Jorge Pereira é adestrador
Em muitos dos meus textos costumo abordar um assunto que gera muita discussão, o sexto sentido dos cães. Esse é um dos assuntos que mais me cativa. Muitos especialistas têm suas versões para esse fenômeno mais sempre geram mais perguntas que respostas.
Particularmente, acredito em uma ligação além do que é considerado comum, que afeta as sensações de ambos e entrelaçam sentimentos. Muito já falei sobre isso, ouvi muitas teorias, mas nada é parecido como você presenciar ou participar desse evento.
Dia desses estava a caminho do trabalho, quando fui envolvido em uma trama que tranquilamente poderia se tornar roteiro de filme. Assim que saí de casa, peguei uma grande avenida de São Paulo, parei em um farol e vi uma movimentação de carros na pista contrária, carros buzinando e mudando bruscamente de faixa. Olhando melhor, pude ver entre os carros um cachorrinho preto bem pequeno, mais ou menos do tamanho de um Dachshund ou mais conhecido como Salsicha, desesperado querendo atravessar a avenida.
Com o rabinho entre as pernas, por diversas vezes ele tentava atravessar a avenida sem sucesso, pois o número de veículos era imensa, difícil de ser atravessada até por uma pessoa adulta. Os motoqueiros aceleravam para que ele voltasse. Alguns motoristas jogavam o carro em cima do pequeno, mais nada disso adiantava ou desestimulava esse cachorrinho determinado.
Assistindo a essa situação angustiante e prevendo o final dessa história resolvi intervir, afinal quem consegue ficar inerte vendo um inocente perdido, assustado, prestes a ser atropelado. Pensei: lá vou eu de novo fazer alguma presepada e encostei minha moto em um lugar inapropriado e segui em direção ao pequeno peludo assustado. Nesse momento, surgiu uma senhora que tentou chamá-lo, mas o ‘danado’ saiu em disparada na direção contrária.
Pedi ajuda para essa senhora. Outro motoqueiro também parou, achando que eu estava com problemas, mas logo começou a nos ajudar. Falei para a senhora espantá-lo para o outro lado da pista, que por ser gramado e ter outros acessos, era o local mais seguro naquele momento, pois também tinha saídas para um bairro e uma ciclovia. Fui para a avenida parar o trânsito e ser chamado de alguns nomes feios. Quem já fez isso sabe como é!
Parei o trânsito. O pequeno percebeu a facilidade, veio em minha direção em uma velocidade descomunal: só dava pra ver um vulto pretinho e o barulho das unhas raspando no asfalto. Assim que atravessou, pude ver onde estava. Ele olhou de um lado para o outro, como quem procura algo, e logo a senhora também notou e disse: "parece que tem outro cachorro na vala, deve estar atropelado". Pensei: pronto agora vai!
Segui em direção a vala, ao lado da ciclovia, imaginado a cena, mas para minha surpresa, deparei com uma pessoa caída no fim dessa vala. Meu coração disparou. Chamei outro homem e nos dirigimos na direção do rapaz que não se movia. Quando me aproximei, vi que ele transpirava muito e tremia. Instintivamente, tentei tocá-lo para ver qual era seu estado, mas fomos surpreendidos por um ataque feroz desferido pelo pequeno cão que tentava atravessar a rua. Sua fúria era tanta que o ‘danado’ parecia um porco espinho, todo arrepiado e com dentes a mostra.
Coloquei minha mochila entre o rapaz e seu fiel defensor para poder avaliar a situação em que ele se encontrava. Ao ver que não intimidava mais, o pequeno passou a ter uma postura preocupada. Sempre que alguém tentava falar com o rapaz que aparentava ter uns 15 anos, imediatamente ele o lambia e olhava para ele como quem queria dizer: "por favor, ajude”!
As pessoas começaram a se acumular para ver o que ocorria. Outro garoto disse que conhecia o rapaz e que ele se chamava Gerson. O jovem disse, também, que conhecia a prima de Gerson e que iria chamá-la, pois moravam próximos do local. Coloquei o rapaz na sombra, sempre sob o olhar do seu guardião. O acidentado recobrou a consciência e contou que estava passeando de bicicleta e que foi abordado por dois homens que anunciaram o assalto. Não querendo entregar sua bicicleta, entrou em luta com os meliantes e acabou sendo atingido por um golpe na cabeça, o que provocou seu desmaio e a queda na vala.
Enquanto isso, apareceu uma garota aflita e descalça, chamando pelo primo e perguntando o que tinha acontecido. Quando tudo se acalmou, pude ver o cachorrinho muito eufórico, mas logo foi repreendido: "sai de cima Tarzan”! Foi assim que eu soube o nome do pequeno herói que ainda iria me surpreender.
Segundo a garota, Gerson sofre de Epilepsia e toma remédios controlados, mas sempre que pode dá umas fugidinhas para andar de bicicleta. Ela contou que sabia que tinha acontecido algo de errado porque Tarzan, que é muito apegado com Gerson, pulou do sofá e foi para o portão. Quando ela procurou por Gerson, Tarzan saiu em disparada sem dar ouvidos aos chamados dela e, pela velocidade, com que o pequeno sumiu de sua vista, fazendo com que a menina percorresse as ruas do bairro atrás dos dois até ser chamada pelo garoto que foi buscar a prima do acidentado.
Questionei-me sobre o que fez aquele pequeno cão colocar sua própria vida em risco, atravessando uma grande avenida, enfrentar a mim e ao outro motoqueiro com tanta coragem. Será que ele conseguiu ouvir seu amigo em perigo a uma distância tão grande, do outro lado da avenida com todos aqueles carros, ou realmente foi seu sexto sentido que avisou do perigo? A pergunta fica no ar.
Depois de toda essa aventura, um casal parou o carro e, com mau humor, pegou Gerson. Uma mulher gritava que o show tinha acabado. Pedi um contato para saber sobre a recuperação do garoto, mas a resposta foi uma olhada de cima a baixo com cara de poucos amigos. Sem dizer nada ou agradecer ninguém, o casal foi embora. Nosso herói, Tarzan, foi completamente ignorado e deixado fora do carro, tendo que correr novamente para acompanhar aquele pelo qual tanto lutou.
Quis dividir com todos vocês a história desse cão que embora seja pequeno no tamanho teve muita coragem. Fica a lição: quando amamos alguém de verdade podemos nos transformar em gigantes, enfrentar todas as adversidades, nos tornarmos verdadeiros leões para defendermos os nossos, sem nos importarmos se alguém vai reconhecer ou não nossos esforços, mas sempre sabemos que existe algo muito forte que nos liga!
Jorge Pereira é Cinotécnico e Etólogo, especializado em comportamento canino
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